
Violentados diariamente com tantas insignificâncias, não é de assombrar que não se perceba, entre prostitutas e salafrários, agressões e indiferenças, onde ainda existe coração. É aí que entra a Morte. Ela, a Morte, é necessária pra desviar a atenção das frivolidades do cotidiano, apontar a direção certa, na qual se caminha uns 2 ou 3 passos, nos melhores casos, acalentados pelo desamparo, indo adiante na própria vida com rubor na face.
Foi necessária a morte de John Martyn pra que eu sujasse meus dedos escavando e desse mais uma girada em Bless the Weather e não mais do que isso foi preciso para que eu me perguntasse o porquê de nunca ter sentido antes a revelação que experimentava naquele momento.
Algumas perdas antes me haviam tomado de assalto e, muito embora eu já fosse bastante fã dos músicos na ocasião de suas mortes, o que mais me marcou foi como algumas de suas músicas ganharam mais profundidade com o novo derradeiro e inexorável fato. Quando, por exemplo, Arthur Lee cantava, ainda em vida, estrofes como a que segue elas não tinham o peso e profundidade que ganharam (ou que pelo menos lhes atribuí):
" this is the time and life that I am living
and I'll face each day with a smile
for the time that I've been given's such a little while
and the things that I must do consist of more than style.
this is the only thing that I am sure of
and that's all that lives is gonna die
and for every happy hello, there will be goodbye
there'll be a time for you to put yourself on.
everything I see needs rearranging
and for anyone who think it's strange
then you should be the first one to make this change
and for everyone who thinks that life is just a game:
do you like the part you're playing? "
Assim foi quando ouvi John suplicando o simples refrão de Go Easy pela primeira vez após sua morte: " Life, go easy on me... Love, don't pass me by... ". Me peguei, comovido, desejando que seus pedidos tivessem sido atendidos, que tivesse tido uma vida agradável nos braços do amor, em qualquer de suas formas, e, certamente com o coração amolecido pela perda de alguém que não era muita coisa pra mim até o momento, escutei o disco inteiro com novos ouvidos... que privilégio raro, caro John, melhorar a vida de alguém no mesmo dia em que se morre?
É certo que sua carreira foi terrivelmente irregular, alternando entre discos perfeitos, como Bless the Weather, Solid Air, Grace & Danger e Glorious Fool e outros algo dispensáveis, porém o homem nascido como Iain David McGeachy e enterrado como John Martyn apenas 61 anos depois pode gozar a eternidade sabendo que, quando se produz tanta beleza nesse tempo tão curto na superfície da Terra, o que se foi sempre será lembrado com admiração.
Mesmo que a vida não pegue leve em uma ocasião ou outra, mesmo que o amor passe despercebido, é reconfortante ter onde esconder o coração do relento, e foi exatamente o que você, John, nos deu e, por isso, obrigado. Descanse em paz.
John Martyn - Go Easy
John Martyn - Head and Heart