sexta-feira, 18 de julho de 2008

A Quimera da Birmânia

Quando a rebeldia punk encontrou o talento e a proficência de músicos realmente capazes, quando eles aprenderam a elaborar, disfarçar, ou transformar em algo mais sutil e interessante suas supostas agendas políticas, quando punks deixaram de ser pivetes com a cabeça cheia de entorpecentes (apenas) e passaram a se permitir reais ambições artísticas que iam muito além de chocar e divertir, quando se pensou o punk menos em termos de comportamento e mais em termos de música, quando a empolgação juvenil que nasceu nas ruas de Nova Iorque "morreu" precocemente em alguma sarjeta inglesa, foi quando nasceu o Post-Punk.
No desabrochar de uma década que veria o rugido estremecedor de guitarras ser emudecido pelos sintetizadores e as calças e jaquetas rasgadas trocadas por blazers com ombreiras e penteados cristalizados sob camadas de New Wave, surgiria uma banda com um disco debaixo do braço que ajudaria a definir as idiossincrasias de um movimento que, apesar de ter enlaçado com tentáculos inescapáveis grande parte da cultura underground dos anos, e décadas, subseqüentes, jamais conseguiu erguer sua cabeça acima das demais manifestações musicais inerentes à década de 80. Tal banda atenderia pelo enigmático nome MISSION OF BURMA e o disco que traziam consigo teria o simples título VS.
Entretanto, a única coisa simples de Vs. é exatamente seu sugestivo título. Secrets começa o disco e a guitarra fremente de Roger Miller soa como o primeiro e pequeno tremor que anuncia a chegada de um terremoto. E é como um abalo sísmico de proporções ridiculamente absurdas, devastando tudo num raio de incalculáveis quilômetros, não deixando sequer sombra do que havia sido e nenhuma chance de se reerguer da experiência exatamente como se era antes, que a selvageria indomável de Peter Prescott e a comedida e polida inquietude de Clinton Conley se unem a guitarra de Roger e a quimera Mission of Burma brame.
Descrever as faixas que compõem Vs. como músicas não faria justiça ao que elas são, não deixaria satisfeito. Vs. é como uma incansável batalha travada em 16 sangrentos rounds absurdamente intensos em que se é nocauteado insistentemente apenas pra ser, em seguida, salvo pelo gongo e posto de pé, ainda cambaleante, pronto novamente para a invisível e ruidosa surra sonora que lhe espera.
A brutalidade com a qual o trio (acompanhado, esporadicamente, por Martin Swope e suas "manipulações") rasga através do repertório é inebriante, impossível de não desejar pela inconseqüência juvenil, não amá-la, não querer gritar à plenos pulmões os refrões e, de punhos cerrados e erguidos, entregar-se completamente à entorpecida elação que brota queimando no fundo do peito e arde incontrolavelmente até as fronteiras entre o homem civilizado e a fera salivante.
E não há termos melhores do que os já usados, corre-se, de agora em diante, o risco eterno de tornar-se cansativo e repetitivo, mas quando se ouve Prescott enquanto ele pune irremediavelmente a bateria à sua frente e não enxergar a brutalidade e selvageria de um homem que ama cada segundo do que está fazendo, enquanto ele vocifera gritos de "Learn How", manuseando suas baquetas como um soldado atira sua arma, é simplesmente inconcebível.
É tão raro, sobretudo hoje em dia, em plena Era do Paroxismo da Insignificância, uma banda que tenha pelo menos um compositor mediano que esteja mais preocupado com suas músicas do que com suas roupas ou pelo menos um vocalista minimamente instigante que se importe mais com o que canta do que com o quão brancos e simétricos seus dentes são, que parece inacreditável o fato de Mission of Burma ter três músicos extremamente competentes, três compositores conscientes e talentosos e, sobretudo, três vocalistas empenhados, inspirados e com algo a dizer, e, cada um, dizendo o que quer com seu próprio estilo, suas peculiaridades e, mais importante, muita paixão. Roger apregoa de forma simples e ainda assim arrebatadora, Prescott grita, uiva, urge e Clint simplesmente canta com sua voz incomum melodias incomuns, porém tão perfeitas que dir-se-ia até mesmo óbvias abrindo o leque de suas influências pop.
Seja por sua arrebatadora energia, por sua inevitável capacidade de tirar o fôlego a cada estrofe, a cada riff ou sua inefável alma rebelde e provocativa, sobreviver incólume à duração de Vs. é uma tarefa, felizmente, impossível, indesejável. Se duas décadas mais tarde Roger, Clint e Prescott não tivessem provado por mais duas vezes que não atingiram o nível de genialidade e perfeição desse disco por acaso, poderia-se pensar erroneamente que sua existência se deve àqueles acontecimentos indispensáveis que ocorrem apenas uma vez na vida de poucos homens cuidadosamente escolhidos ao acaso para abençoar a humanidade com uma obra de arte verdadeiramente sublime, pois Vs. é como uma epifania. Seu único defeito é que acaba.

Mission of Burma - Red
(do disco The Horrible Truth About Burma)



Mission of Burma - Vs.










01 - Secrets
02 - Trains
03 - Trem Two
04 - New Nails
05 - Dead Pool
06 - Learn How
07 - Mica
08 - Weatherbox
09 - The Ballad of Johnny Burma
10 - Einstein's Day
11 - Fun World
12 - That's How I Escaped My Certain Fate
13 - Forget
14 - Ok - No Way
15 - Laugh the World Away
16 - Progress


Discografia:

Vs. (1982) * * * * * √
The Horrible Truth About Burma (1985) * * * *
Onoffon (2004) * * * * * √
The Obliterati (2006) * * * * * √

√ - (Volume 11 pick)

3 comentários:

Unknown disse...

Conheci o blog a pouco tempo e já me encantei com a facilidade de leitura e compreensão do assunto por parte de quem o escreve.

Em especial, "A Quimera da Birmânia" está excelente!

Parabéns CPJr!

My King Tattoo disse...

O primeiro parágrafo de "A Quimera da Birmânia" é o mais foda. Melhor definição do pós-punk que já li...

Z disse...

Linda descrição, impecável. Cada vez que visito o blog gosto mais; fôsse um periódico diário, certamente estaria na minha página inicial. Ótimos artigos sobre ótimas bandas.