The death of your father, the death of your mother
Is something you prepare for
All your life
All their life
Is something you prepare for
All your life
All their life
Eu
não fui ao enterro do meu pai. Quando
recebi a notícia de sua doença ainda sentia o peso dos quase 30
anos de animosidade e aversão que houve entre nós durante toda a
vida. Passam a infância inteira te contando histórias e fábulas sobre mágicos que
fazem coisas fantásticas e inacreditáveis usando palavras mágicas, mas, na verdade,
a única palavra mágica é Câncer.
Foi
essa palavra que me fez esquecer, por alguns dias, os maltratos, à mim, aos meus
irmãos, à minha mãe. Foi ela que me fez ignorar os anos e anos e décadas de
desprezo mútuo. Foi essa palavra que me fez escavar a memória em
busca dos pouquíssimos momentos bons que vivi com quem deveria ter sido meu pai, que me
fez lembrar de suas piadas vendo comerciais de TV, de jogar River Raid com ele, de levar um tapa na boca aos 3
anos de idade por chamá-lo de algo que eu certamente nem sabia o
que era. De, escondido com um amigo, vê-lo dançando bêbado sozinho
na boate no aniversário de quinze anos da minha irmã. Me fez lembrar do seu tombo
incrível jogando futebol de sapato social e calça branca, de suas mentiras impressionantes e todas as
vezes que ele havia capturado uma onça com um galho de árvore. Me fez lembrar dele de short de índio, camisa
social pra dentro, meia fina e tênis Rainha me chamando pra ir ao
mecânico num sábado à tarde. Dele dançando bêbado e pelado Age
of Aquarius na sala do apartamento ou de sua versão peculiar de
Help! dos Beatles.
Foi
ao ouvir "Câncer" que eu senti um ímpeto de me desculpar com ele por
tudo que houve entre nós. Coloquei, erroneamente, sobre minhas costas o
peso de todos os problemas que tivemos. Foi só então que eu percebi
que o que me falaram a vida toda era um pouco verdade: que pai é pai, apesar
de tudo, e que é um só.
Ainda bem.
Uma
vez eu disse a ele: "Você vai morrer
sozinho, sem ninguém." Ele me respondeu com um dar de ombros, como quem diz: "E daí?" E eu disse: "Mas eu vou
ao seu enterro, eu vou carregar seu caixão". "Não precisa, não quero". "Faço questão, com um sorriso daqui, àqui, te coloco no chão e vou embora".
Mas eu não fui
ao seu enterro. Outra vez, pela última vez, a vontade dele prevaleceu. Passei a vida
o considerando um estranho, os últimos quatro anos ou mais sem falar
com ele ou mesmo vê-lo, então por que vê-lo num caixão e
ter como essa a última lembrança de meu pai, foi o que pensei.
A
verdadeira última lembrança de meu pai é ele me dizendo: "Vou
entrar porque só de vir aqui abrir o portão parece que eu tô
bêbado", uma sensação que ele conhecia bem. Aí eu o abracei
despedindo, disse que o amava, a maior mentira sincera que já contei. Ele
entrou e, enquanto o resto da minha família se despedia, eu o vi pela janela pegando, na sala da casa, seu maço de
cigarros, sua garrafa de água e ir cambaleando pra dentro da casa
tateando a parede enquanto o Câncer destruia seu cérebro, de bermuda e camisa velha, esgarçada na gola. Uma
imagem que contrasta com a lembrança que eu tenho dele da minha infância... de
sapato social, calça branca, camisa de botão, alto e sempre uma
ameaça.
Que
sejam essas minhas lembranças. Lembranças de um homem que sempre
considerei o melhor exemplo de como não ser. Lembranças minhas, de coisas
que vivi sozinho, coisas que vi porque observei, não porque ele era
uma atração mórbida em um caixão, com todos os olhos, lacrimosos ou
não, vendo a mesma coisa, seus 66 anos de histórias, verdadeiras e
falsas, principalmente falsas, se encerrando ali, nos seus últimos tristes e solitários
minutos na superfície da terra.
Que
as lembranças desse dia fiquem com os outros, com meus primos e tios, com meus avós, que sofreram a primeira perda de um filho,
mas que não sejam as minhas. Eu sou egoísta e o pai é meu, me lembrarei dele da forma que eu quiser e eu pra sempre vou
lembrar dele vivo, sadio, forte e desagradável.
Se
eu pudesse voltar àquele último minuto que passei com meu pai, além
de dizer que o amava, eu pediria também desculpas. Desculpas por
nunca ter sido um filho melhor, um filho de verdade. Eu espero que
ele tenha refletido sobre toda a vida dele em seus últimos meses,
semanas, dias, noite, dia e minutos de vida e que ele tenha percebido tudo que ele fez de errado, e como toda sua solidão era sua própria e inegável culpa. Era sua a culpa de tudo que fiz ou deixei de fazer... eu sei que eu o
desculpei por alguns minutos naqueles dias. Me arrependo um pouco por não ter dito.
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